Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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31 de janeiro de 2014

O País de Opereta e a Ribeira da Beselga

Quando eu estava no colégio tive um professor de físico-química absolutamente singular.
E ocorre-me singular por ser o que ele era - único - e por ser termo muito do século XIX. Pois, de facto, aquela criatura única nunca deveria ter passado de novecentos. No início dos anos setenta do século passado (o que para aqui já vai de séculos!) o homem era totalmente anacrónico.

Ele tinha consciência disso e verbalizava-o. Se verbalizava! O seu discurso irritado de assento beirão incorporava todo o estertor de um mundo à beira do fim. A todo o momento lhe saíam da boca impropérios sobre o estado do mundo e anátemas sobre o futuro que, com a Graça de Deus, dizia ele, não viveria mas (aqui deixava adivinhar um prazer de perversa vingançazinha) nós sim.

Professor no colégio há várias décadas, dele contavam-se muitas histórias provenientes do seu feitio irascível, nervoso, apressado e cioso das suas coisas, e do seu muito particular entendimento da didáctica da sua disciplina que mantinha os alunos afastados do contacto com materiais, equipamentos e experiências, mesmo nas chamadas aulas práticas, com o argumento que “não sabendo, estragavam”.
Mas não são essas anedotas que me têm feito ultimamente lembrar dele e trazê-lo agora aqui. São a sua visão política e as angústias existenciais que o atormentavam e que ele deu a conhecer a um grupo de miúdas incapazes de compreenderem a honra que lhes estava a ser manifestada.

A minha terá sido das últimas turmas que leccionou e que já pertencia a uma geração perdida. 
Veiga Simão estava no governo, a escolaridade já tinha sido alargada além da primária, havia a telescola, já não tínhamos latim e não eram necessárias notas altíssimas para dispensarmos da oral e entrarmos na Universidade. Estava instalado o laxismo. O pobre achava perverso todo este estado de coisas, aliado a muitos outros que enumerava e que já saíam da esfera da educação, e atirava-no-los à cara sempre que não sabíamos acertar uma equação química ou calcular a distância ou a força ou lá o que fosse fisicamente exigível.
Como éramos realmente más alunas, sobretudo na disciplina dele e não quero dizer que fosse exactamente culpa sua, eram mais as ocasiões em que o erro e a omissão surgiam do que o contrário, pelo que também eram frequentes as ocasiões em que tínhamos de ouvir a sua verborreia acerca dos verdadeiros culpados da nossa santa ignorância (este “santa”, também usado por ele, era adjectivo muito em moda no colégio para classificar a nossa ausência de sabedoria, coisa de notar pois até nem se tratava de um colégio religioso, talvez por isso mesmo).

Por essa época eu escrevinhava. Tinham-me dito, Deus lhes perdoe que já lá estão, que seria escritora e eu tirava apontamentos para memória futura sempre que achava  assunto "interessante". A prosápia não me envergonha agora porque tomáramos todos nós, quando temos catorze anos, ter tido apenas esse pecadilho para confessar. Pois, dizia eu que escrevia e pareceram-me aquelas aulas, aquele professor e sobretudo o que ele dizia (na minha juvenil perspectiva de verdadeira santa e abençoada ignorância) dignos de serem registados pela estranheza, pelo absurdo e até pelo ridículo. E fi-lo. Os cadernos pautados de capa de cartolina vermelha da disciplina passaram a ter as últimas folhas cheias de transcrições das exaltações, expressões, elucubrações e todas as indignações do meu velho professor de Físico-química.

E, dos anos lectivos com aulas de Física às segundas, quartas e sextas e de Química às terças, quintas e sábados, inexoravelmente às oito horas da manhã, resultaram muitos e muitos cadernos que, além dos apontamentos e cópias dos desenhos das experiências que o professor punha no quadro, continham, nas últimas folhas, frases capazes de construírem um tratado sobre o alter ego de um velho, deslocado no tempo, reaccionário às mudanças vigentes e premonitório das desgraças futuras.

Esses cadernos, guardados amarrados juntos num cordel, seguiram o caminho dos livros escolares usados, de todos os filhos. Encontrei-os, anos mais tarde, dentro de uma arca, ainda com o cordel à volta, transformados em pasta, depois de um dos abraços que, num Inverno qualquer, a Ribeira da Beselga se lembrou de ir dar à nossa casa.
Perdeu-se assim o registo fidedigno que me permitiria, hoje,exibir o olhar sofrido e profético de quem testemunhou a queda do mundo certo e acertado em que nasceu, e vaticinou este nosso triste presente, órfão e tresmalhado.
Quem sabe se não estaria ali a fonte onde iria beber a obra da tal (mal)fadada escritora. Não alcançámos, assim, a imortalidade, nem ele nem eu. Não o quiseram as nereidas das torrentes invernosas da Beselga!

Mas, não se perdeu a mensagem. Pelo contrário, alcançou o seu fim. A figura ridícula e as palavras risíveis, presenciadas por adolescentes, foram, as segundas, finalmente entendidas e ele, o homenzinho grotesco, transformou-se na figura tragicamente simpática que inspirou este texto.
E só lamento não ter o talento necessário para vos fazer ver o que ficará para sempre cunhado na minha memória: a imagem daquele personagem vestido de escuro, magro e tenso, com papéis revolvidos nas mãos nervosas, imparável em movimentos entre o quadro e a secretária enquanto a sua garganta revoltada concluía a longa dissertação –Somos, pois, um país de opereta mas o que aí vem, - e dirigia-se à janela que abria – o que aí vem,- e apontava Rua da Graça abaixo, e nós levantava-mo-nos, curiosas, para lhe acompanhar o olhar– vai ser pior, muito pior, incomparavelmente pior! (MFM)



A janela "do futuro" era a da segunda sacada à direita, no 1.º andar.

A exacta sala de aula com a exacta mobília. A janela referida ficava ao lado da secretária que se vê à direita.Fotografia tirada por ocasião de visita de antigos alunos e retirada  daqui

2 comentários:

  1. O Genga foi meu professor no início dos anos 50; era muito competente e dedicado mas um desastre de relações humanas, pelo que tentávamos levar aos “arames”, o que não era difícil. Quando se exaltava, ralhava-nos: “seus maus”, “seus malandros”, “seus incivis”, o que não ajudava muito. Apesar de tudo marcou muitas gerações que, ainda hoje, pegam sempre a garrafa pelo rótulo.
    Os trabalhos práticos eram mesmo práticos: classificávamos as plantas que ele próprio apanhara na véspera, qual Linneu beirão, dissecávamos um caracol e um peixe; usávamos as balanças de precisão com os pequeninos “cavaleiros” tão leves que voavam se espirrássemos, Ainda hoje, quando algo cai ao chão, o procuro com os olhos, resistindo ao impulso de me levantar, o que poderia pisá-lo.
    Fazíamos reacções químicas no magnífico laboratório que ele montara. Lá aprendi a pegar sempre a garrafa pelo rótulo; assim, se uma gota escorrer, acontecerá do outro lado e não correrei o risco de sujar a mão quando a tornar a usar. No laboratório, os frascos continham “os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais.” Que eram cáusticos.
    Ainda hoje me encantam as pedras; sempre que topo um calhau facetado, pergunto-me o sistema em que terá cristalizado, se triclínico, se ortorrômbico. E pergunto-me em que sistema teria cristalizado o Genga.

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  2. Vi Genga descer à Terra

    A mim ensinou-me tudo.
    Ensinou-me a olhar para as cousas.
    Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
    Mostra-me como as pedras são engraçadas
    Quando a gente as tem na mão
    E olha devagar para elas.
    (Alberto Caeiro?

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