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2 de junho de 2012

Manuel Augusto Motta


"O Tio Manuel Augusto confidenciou-nos que no seu tempo o que lhe dava mais gozo, era ver as Senhoras a subir para os coches e levantavam a saia deixando ver os tornozelos! Era o máximo."





"Anos mais tarde vi o nosso Tio Manuel Augusto Mota zangado com o seu ajudante de sempre. Foi bonito de ver! Ambos velhos, de cajado e com a sua pinguita, nunca acertaram um no outro..."


(citações de A.L.C.M.a propósito do seu tio Manuel Augusto [n.Paço da Comenda, 2.07.1884], morador em Porto da Lage, que no inicio do sec.XX se dedicava ao transporte de mercadorias e pessoas a partir da Estação de Paialvo).

6 de maio de 2013

Recordações da Nossa Aldeia


(continuação)




A destinatária não gostou da poesia, conseguiu saber quem eram os autores, pegou na carta e foi fazer queixa à policia. Não sei se à primeira a moça sabia quem eles eram todos. Os sete “mosqueteiros” usaram o lema “um por todos e todos por um”. Quando foram notificados lá seguiram todos para Tomar, cada um na sua bicicleta. A queixosa, a mãe e mais uma irmã, também foram chamadas. Quando o comandante da esquadra resolveu castigar os “réus” aplicando multas, a cada um, de duzentos escudos para a sopa dos pobres, perguntou à queixosa se achava bem o castigo, ao que ela respondeu:
- Acho pouco!


Durante anos a pobre da rapariga era só conhecida por “acho pouco”. Há pouco tempo uma pessoa que veio morar para Porto da Lage uns três anos depois desta história, perguntou-me porque apelidaram a moça com tal designação.
Na opinião do comandante da esquadra as quadras ou versos mais maldosas eram da autoria do rapaz mais novo. Isto foi talvez há sessenta e cinco anos, já quase todos já não estão entre nós. O mais velho teria agora oitenta e sete anos.


Por aqui se teriam reencontrado os compadres
 Os divertimentos dos jovens eram diferentes dos seniores. Havia dois compadres, cunhados, primos e vizinhos que também marcaram pontos. Um era Manuel Augusto Mota e outro António Sousa Rosa. Tanto um como outro gostavam de beber uns copitos. Todos os sábados iam a Tomar numa charrete puxada por um cavalito: iam ao mercado. O Manuel Augusto Mota comprava 250 g de carne de vaca, o outro comprava mais qualquer coisa para oferecer a um cunhado, era uma devoção. Em determinado sábado lá vinham os dois de regresso a subir a ladeira de Tomar, mas parece que já vinham aconchegados. Chegaram ao topo da ladeira – a primeira paragem no Chico Elias – taberna. O Manuel Augusto Mota foi tratar de refrescar a boca. Quando chegou cá fora não viu a charrete nem o cavalo nem tão pouco o compadre. Resolveu meter-se a caminho a pé sete quilómetros. Quando chegou a casa já vinha lúcido e o compadre estava sentado no portal da casa dele à espera. Quem foi o culpado do incidente foi o cavalo que não percebeu que faltava um passageiro. Ninguém lhe fez sinal para esperar. O António Sousa Rosa tinha perdido o chapéu, teve sorte porque o Manuel Augusto Mota o encontrou na estrada e apanhou-o para o entregar ao ingrato do compadre.

(continua)

19 de março de 2015

Dia do Pai


"Dia 19 de Março comemora-se em Portugal o Dia do PaiCelebra-se no dia de São José, marido de Nossa Senhora, mãe de Jesus."


Augusto Pereira da Motta, 16.08.1858 - 27.01.1915

Augusto Pereira da Motta, que foi buscar o nome ao padrinho Augusto Rodrigues, de Paialvo, nasceu no Paço da Comenda, filho de António Pereira da Motta, também do Paço e de Joaquina de Jesus Ferreira, da Beselga, freguesia de Assentis, Aos 25 anos, solteiro proprietário, reza o assento, casa-se com Maria José, quase a completar 19 anos, empregada na lida de sua casa, moradora na Quinta da Belida. Como se terão conhecido, o que os terá levado ao casamento? Ele ter-se-à encantado com os olhos claros dela, ele já usaria aquele chapéu e ela achou-lhe graça?

Já estou a ver o filme todo: [era Março, o primeiro domingo de bom tempo, a Primavera de 1883 anunciava-se, cheirava a alfazema e à terra lavrada que começava a ser preparada para a batata e o milho (espero que o Borda d'Água esteja certo) e Augusto flanava de fato domingueiro, com os amigos, fazendo tempo cá em baixo, à espera para subir a ladeira e assistir à missa. De súbito reparou numa das raparigas do grupo que se aproximava, vindo das Sobreiras. Já a conhecia, como ela saberia quem ele era, todos se conheciam na terra, mas há um dia, o dia e hora exactos, em que se repara. E a subida da ladeira e a missa já foram diferentes, a primeira mais acelerada do que o costume, a segunda com a atenção mais focada do que nos ofícios anteriores. Desta vez, já tinha a vista fixa num objecto, não andava à cata desta ou daquela. Mas tivera pouca sorte à saída da capela, perdera-a de vista na confusão da saída e só a tornara a vislumbrar já ela ia longe, confundida entre outras. O mais certo, agora, era só voltar a vê-la no domingo seguinte.Que ela morava na quinta, não cirandava por ali, não ia à fonte nem à venda. Mas já magicava um plano. Na 4.ª feira, à vinda da estação na carroça com mercadoria que lá ia levantar, havia de  passar pela quinta, até lá cogitaria um pretexto para o fazer. Chegado o dia, afinal, nem tinha sido preciso apresentar a desculpa preparada, ela estava sozinha no tanque, perto só uma serva semeava na horta.Nem pais nem irmãos à vista.A conversa fora sobre coisa nenhuma mas, quanto a ele, chegara para se fazer entender. O que ele não pode saber é que não partira a tempo de a sua carroça não ser vista, ao longe, pelo pai dela que regressava do extremo da quinta. Perguntada, Maria José respondera quem fora o visitante, sim, mas acrescentara que não dissera ao que viera.  O pai não insistira mas ficara a pensar no caso. Ou muito se enganava ou o que o figurão queria estava ali à sua frente, a ver se o aviava com respostas rápidas. Impunha-se estar atento e, para já, não espantar a caça. Que ela era boa menina e nunca lhe dera preocupações, mas sabia-se lá os estragos que a lábia do outro não fizera já na cabeça dela? Que, conversa, tinha ele, e não só para as mulheres, enrolava qualquer desprevenido que se fiasse nele, não era em vão que lhe chamavam o cigano. Mas que empregasse o palavrório nos negócios, se lhe fazia bom proveito, e lhe largasse a porta de casa. Para que raio lhe havia de dar, vir-lhe desencaminhar a rapariga! E, enfurecido com o rumo que os pensamentos estavam a levar tratou de despachar a filha e de se encontrar sozinho com a companheira, a fim de desabafar, porque não é bom manter um homem ideias negras muito tempo a trabalhar dentro da memória. Mas a mulher deu pouca importância à coisa, que eram fantasias dele, que deixasse estar a rapariga que ainda nem se apercebera que havia homens no mundo, que ela, mãe, não dera por nada, e se não dera era porque não havia. E, se fosse, o que é que tinha? Queria ele a filha para freira? não queria! Se não fosse este era outro, e o rapaz nem era dos piores. Vinha de boa gente, tinha de seu, o que é que ele queria mais? Era aldrabão? Que ela soubesse não roubava nada a ninguém, tinha talento para falar, pois então! Burro era quem se deixava levar, ora essa, que se acautelassem, ele não obrigava ninguém! Manuel estava perplexo com o pragmatismo da mulher! Então já um homem não deve avaliar o génio do genro que quer para a filha? Que tinha de seu?! Tinha o que a família da mãe lhe deixara que, esses sim, eram gente trabalhadora e honrada. Que o pai enquanto não gastara tudo o que era dele não descansara, o filho tinha a quem sair, que conhecera o António Mota, que Deus já lá tinha, sempre folgado e com a mania que era fidalgo. - Gente muito pouco amiga de vergar as costas, convence-te disso, mulher. Vê lá se é isso que queres para a tua filha. Vê lá se depois dos sacrifícios de toda a vida que tu e eu fizemos, queres que uma parte vá parar à mão de malandros. Pensa bem, porque enquanto eu viver e se fizer nesta casa o que eu mandar, gente daquela laia não põe cá os pés! A mulher achou por bem mudar de estratégia, conhecia até onde podia contrariar o marido. Quando ele tocava no sagrado trabalho e nos sacrifícios, era escusado. Homem da terra, para ele o único trabalho honrado era o da lavoura. Desconfiava de quem não trouxesse enxada ou foice na mão. Deus lhe perdoasse, que é até com os padres embirrava para já não falar dos doutorzecos, como ele dizia, filhos de lavradores como ele, que, depois de gastarem anos em Coimbra, continuavam preguiçosamente a viver da casa paterna sem lhes acrescentar nada, antes a delapidá-la. Acalmou portanto o marido, convencendo-o que aquela era uma conversa no ar, sem fundamentos. Estavam para ali a divagar e a zangarem-se, sem razão nenhuma.
Mas havia razão, como Manuel Sousa Rosa intuíra, Augusto não desistiu e o namoro pegou. Perante as dificuldades levantadas, que a mãe dela, quando se convenceu que as desconfianças do marido tinham fundamento, cerrou de tal modo fileiras que ele nem vê-la quanto mais falar-lhe, Augusto não hesitou e resolveu ir entender-se com o futuro sogro. Foi encontra-lo à beira do ribeiro, a cortar canas para estacar o feijão e veio de lá, liminarmente, corrido. Interrompera-o ainda nem a meio chegara do seu discurso preparadissimo. Sim senhor, acreditava que as intenções dele eram boas, melhor fora que não. A enxada que ele estava a ver, ali, nas mãos dele, já o teriam rachado se suspeitasse outra coisa, mas a filha não estava para casar, era muito nova. E, quando chegasse a ocasião, ele, seu pai, lhe arranjaria marido conveniente. O que era marido conveniente, pois ele atrevia-se a contestá -lo? Mostrava bem o desavergonhado que era. Pois ia dizer-lhe quem não era nem seria nunca conveniente! – Estava mesmo agora a pô-lo daqui para fora, saia já da minha frente!
E Augusto saíra, mais zangado do que triste. Tinha a certeza de conseguir a Maria, era uma questão de tempo. Não costumava ter dúvidas, quando se lhe metia uma coisa na cabeça. Começavam era a aborrecê-lo os trabalhos para o conseguir. E, embora tivesse previsto que a conversa com o pai dela não viesse a ser suave, porque estas matérias nunca eram fáceis e porque no seu caso, não percebia porquê, o sogro não gostava dele, nunca imaginara que as coisas correriam assim. Diabos levassem o velho, com que raiva o espantara dali para fora! Mas à medida que se ia afastando do local onde se dera o encontro, ia-lhe passando a zanga e começava a achar graça à exaltação do homem. Como se agigantara aquela estatura baixa, embora entroncada, e como os olhos esverdeados tinham faiscado quando lhe perguntara qual seria o marido conveniente para a filha? Até lhe dava vontade de rir. Bom, já lhe estava a voltar a boa disposição. Não conseguia ficar irritado muito tempo. Ia dali para casa falar com a mãe, ela havia de se lembrar de algum parente lá de Assentis que se desse bem com a família da sua Maria e que interferisse a seu favor. Tudo havia de correr bem. Mais logo trataria de lhe mandar recado para se encontrarem, já há dois dias que a não via, estava a ficar com saudades do sorriso dela...]
 ...Bom, por mim o filme acabou, não vejo mais, adivinho que se segue a pepineira habitual, contrariedades, choradeiras, ameaças, o costume, até ao apogeu final. Os noivos levaram a sua avante, os factos comprovam-no. A 10 de Outubro do mesmo ano casaram-se na Igreja de Santa Maria Madalena. Foram testemunhas José Lopes Larangeira, "feitor do senhor marquês de Thomar" e um tal Dom Jorge Arcos, negociante, natural do México, representado por João de Sousa Rosa, tio da nubente e "outras muitas pessoas que presentes estavam". A cerimónia deve ter sido "importante", como se dizia então, ou porque o pai da noiva não quis ficar mal visto e se encheu de brios ou porque Augusto Mota, afinal, não estaria assim tão mal de finanças.
Os filhos sucederam-se, o primeiro, Manuel, que ainda nasceu no Paço, local em que os pais ficaram a morar, Ana, que nasceu na Quinta da Belida, em casa dos avós, seguindo-se os outros já em Porto da Lage, onde Augusto construiu uma casa para a família viver, pois a mulher não teria aguentado continuar a habitar na casa do Paço devido ao cheiro do negócio de curtumes a que o marido se dedicava: Soledade (cujos netos estão, a maioria, na diáspora)que veio a casar com o primo António Sousa Rosa, João, Maria, Maria da Conceição, António, Henrique e mais dois, falecidos ainda crianças.
Todos os filhos ficaram a viver em Porto da Lage, alguns casando com primos direitos maternos, contribuindo não só para o povoamento da terra mas também para o seu desenvolvimento económico e social. A agricultura, o comércio, a industria, conheceram um grande incremento em Porto da Lage graças aos filhos de Augusto Pereira da Motta. Será, por isso, justo e oportuno lembrá-lo neste "dia do pai" (MFM)


Imagem cedida por H.C.M

P.S-Augusto Pereira da Motta tinha três irmãos que continuaram a viver no Paço: Ana (n.1857) casada com Agostinho Ferreira (pais de Maria, Henrique, Augusto, Manuel, Joaquim, António e Agostinho - os poetas), Henrique (n.1861) terá casado tarde e não terá tido filhos e Manuel (n.1864) casado com Ana Rosa (pais de Maria, João, Georgina e Augusto). Ao contrário de Porto da Lage, em que já não moram descendentes de Augusto, sei que no Paço ainda vivem descendentes dos seus irmãos. Para eles as saudações desta prima.(MFM)


24 de outubro de 2013

Flagrantes da vida real I

                                                            Os Sousa Rosa

O nosso bem-aventurado, próximo antepassado, bisavô Manuel Sousa Rosa e a nossa, também não menos famosa e afanosa, bisavó Ana Jesus Calçada, deixaram nestas terras que pisaram, que regaram com o suor do rosto e que nos legaram, "o modesto número" de 36 netos, dos quais 10 casaram entre si. Ei-los:
António Sousa Rosa (Sobreiras)
Soledade Rosa Mota (Porto da Lage)
Francisco Sousa Rosa (Sobreiras)
Maria Rosa Escudeiro (Porto da Lage)
Augusto Sousa Rosa (Porto da Lage)
Maria Rosa Mota (Porto da Lage)
Manuel Pereira Mota (Porto da Lage)
Lúcia Rosa Mota (Quinta da Belida)
António Rosa Mota (Quinta da Belida)
Ana Rosa Mota (Porto da Lage)

Nota: Manuel Pereira Mota ou Manuel Augusto Mota, Maria Rosa Mota, Soledade Rosa Mota e Ana Rosa Mota eram irmãos, filhos de Augusto Pereira Mota e Maria José Sousa Rosa.
Deste concerto de uniões houve uma só senhora e nove varões que por aqui viveram uma parte das suas vidas, até que emigraram para outros lugares onde as oportunidades de angariar sustento de vida são possíveis. Somente dois se mantiveram em Porto da Lage. (Ilídio Mota Teixeira)


Soledade de Sousa Rosa (1861, 1947) filha de Manuel de Sousa Rosa e avó de
Ilidio Mota Teixeira.

17 de setembro de 2016

Quinta de Porto da Lage *


Ao meu avô que aqui nasceu completam-se hoje 124 anos.

                                                                       Prólogo

A designação porto da Lagem aparece no século XVII associada ao seu moinho de fazer farinha. Sabe-se o nome do moleiro daquela época, da mulher, da data do baptismo dos filhos. O pequeno território, situado na margem direita da Ribeira da Beselga, ladeado  pela estrada real proveniente de Coimbra desde a ponte onde o Ribeiro da Longra desagua naquela Ribeira e o local onde a estrada se começava a afastar para Paialvo e deixava de ser termo de Tomar, tudo indica ser a base do que se passou a chamar no final do século XVIII, também, quinta de Porto da Lagem. 
De acordo com os registos paroquiais da freguesia da Madalena, no século XVIII verifica-se alguma vida social em Porto da Lage: os moleiros e família, os administradores e criados da “quinta” e mais, "os assistentes" e o pessoal de passagem pela estalagem que, sabemos, tem autorização de funcionamento em 1747 embora existisse antes. Assiste-se nesta época a grande confusão: indiferentemente se chama Quinta de Porto da Lage à propriedade de Manuel Pereira de Sousa – o Casal ou Quinta da Belida (ou Velida) - ou à Quinta de Porto da Lage ou moinho de Porto da Lage de Raimundo José de Sousa.

                                                               I
                                                       Os Sousa 

Raimundo de Sousa, natural de Paião, hoje Figueira da Foz então Montemor-o-Velho, terá herdado a quinta ainda criança, tendo, no entanto, apenas passado a habitá-la por volta de 1780, já desembargador aposentado, quando se casa. Dos seus numerosos filhos será o mais novo, João Manuel de Sousa, nascido em 1798, o que vem a ficar com a quinta. 
De João Manuel conhece-se além das datas de nascimento e da morte (1871) que terá vivido com falta de dinheiro (as hipotecas e as dívidas em dinheiro à Misericórdia de Tomar provam-no) e terá mantido relação marital com uma rapariga dos Vales, Maria José (ou Maria da Piedade) de quem tem quatro filhos e com quem casa em 1861, data a partir da qual legitima os filhos (até então expostos). Desconhece-se porque não se casou antes e mais, por que só legitimou os filhos sendo estes já adultos. Será coincidência mas o certo é que, pouco depois do seu casamento, um cunhado, um tal Bacalhau irmão da agora mulher, lhe paga uma avultada hipoteca. Concluir que o pagamento desta dívida terá servido, também, para pagar a moralização da família é especulação que abonará pouco o carácter do senhor, que já Lá está há muitas décadas, pelo que ficaremos por aqui. Mas que a coisa está mal explicada está.
Dos quatro filhos é sobejamente conhecido João Maria de Sousa (n.1836), o médico e historiador, cujo nascimento a tradição atribui ter sido em Porto da Lage, o que eu acredito embora nenhum dos documentos relevantes da sua vida o ateste; consta como nascido em Tomar (o que fará sentido pois foi baptisado como exposto em S.João Baptista) no assento de casamento, e como nascido em Paialvo na certidão de óbito. O seu irmão Henrique será o primeiro chefe da estação de caminho-de-ferro de Paialvo, não tendo as duas irmãs, Maria da Conceição e Margarida da Glória, que se saiba, algo que se destaque nas suas vidas.
Após a morte de João Manuel, a viúva e três dos filhos continuam a morar em Porto da Lage, enquanto João Maria, casado, vive em Tomar, até que, em 1879, a família decide vender a quinta. Após a morte da mãe, que terá ocorrido cerca de 1893, tem-se notícia que Henrique é funcionário das alfândegas no Porto e as irmãs vivem em Coimbra, enquanto João Maria permanecerá em Tomar até à sua morte, que ocorrerá em 1905. Por essa época já terá acabado, de vez, a ligação da família Sousa a Porto da Lage. Por aqui viveram pouco mais de cem anos.

Jornal "Emancipação" -28.12.1879

                                                                II
                                                    Os Sousa Rosa

Em 1883  Manuel de Sousa Rosadono da Quinta da Belida,  compra uma propriedade rústica e urbana denominada Quinta de Porto da Lage, próxima à estação da via férrea de Paialvo, na freguesia da Madalena neste concelho [Tomar], que consta de terra de semeadura, vinha, uma morada de casas e diversas acomodações agrícolas e um moinho ou azenha na Ribeira, confrontando a Norte com António Gonçalves, Poente e Sul com estradas, Nascente ...  pagando um conto dezasseis mil seiscentos e trinta e dois réis aos vendedores e ficando com o encargo da hipoteca à Companhia Geral do Crédito Predial Português no valor de um conto, novecentos e oitenta e três mil trezentos e sessenta e dois réis.


Assinaturas do representante dos vendedores e do comprador, na escritura de compra e venda  da Quinta de Porto da Lage.


     A propriedade rústica e urbana denominada Quinta de Porto da Lage, conforme consta da escritura que transcrevemos, para além de não ser um corpo, pois tem três números matriciais, também, pela forma como é caracterizada - "propriedade denominada quinta ...",não parece ser, "institucionalmente" uma quinta, antes se chamará assim por tradição e hábito. A "quinta" também é mais pequena do que se julgaria, pois alguns terrenos contíguos, embora do mesmo dono, não fazem parte dela. É o caso de uma terra de semeadura com árvores denominada a Carreira separada da quinta pela estrada, que Manuel de Sousa Rosa também compra  e que consta da mesma escritura da quinta. Igualmente a casa que, suponho, terá sido a antiga estalagem não integra a quinta, continua na posse dos Sousa e só será vendida a Faustino dos Santos em 1893 para que este nela instale uma taberna, permanecendo os antigos donos ainda com o pátio mas comprometendo-se a não o utilizar de forma a fazer concorrência ao negócio de Faustino! 
Outro caso é aquele em que, em 1884 um tal Bernardino dos Santos Carneiro, de Lisboa, comprara à família Sousa " um talho de terra de semeadura no sitio limite da Quinta de Porto da Lage em cujo terreno está construído um prédio com fábrica de destilação e adega e mais arrecadações que confronta a norte e poente com a estrada .... a nascente com o ribeiro".Esta propriedade (1)será também comprada, em 1895, por Manuel de Sousa Rosa e por um tal Sousa, da Beselga. 
Aquele Bernardino teria também vendido, a Manuel Mendes Godinho, um ano antes, o armazém que conhecemos hoje como "da União Fabril" o qual, atendendo à data que ainda ostenta, deverá ter sido comprado por si, Bernardino, cerca de 1877, à família Sousa, também ele não fazendo  parte da quinta, conforme está comprovado.
Estranhos contornos tinha a famigerada quinta!
Manuel de Sousa Rosa e a mulher são agora donos e senhores da chamada Quinta de Porto da Lage e de alguns terrenos adjacentes, da Quinta da Belida e de outras fazendas avulsas dispersas pelas Sobreiras, Gaios, Galegos,etc. São grandes lavradores à moda antiga, com grandes olivais e figueirais, terras de semeadura, vinhas e hortas na várzea da ribeira, mas será que os tempos ainda correm de feição para quem só depende da agricultura e pretende deixar este modo de vida aos filhos? O casal pensa que sim e quer ajudá-los proporcionando-lhes já os meios necessários enquanto são novos, pelo que em 1894 faz uma escritura de doação de parte dos seus bens, entre eles a quinta de Porto da Lage, a quatro dos seus sete filhos: Manuel, Maria José, António e João, sendo que os dois primeiros já viveriam na quinta desde 1886, no valor de 750 000 réis para cada um (420 000 euros?). Mas os seus planos saem gorados, afinal os tempos, e os planos dos filhos, já são outros.
O filho João, a quem calhara a “fatia” correspondente ao moinho, poucos meses depois vende  a sua parte ao irmão Manuel e ao sogro Manuel Mendes Godinho. O que terá pensado (e até dito!) o pai desta apressada vontade do filho se desfazer do que lhe fora oferecido, embora enterrado nos segredos do passado, pode imaginar-se! enfim, pelo menos a cidade de Tomar terá lucrado com o desplante (seria graças a isso que foi financiada aquela a que hoje se chama Casa dos Tectos?).
Contas feitas, a antiga quinta, e só essa, passa a estar, nos finais do sec.XIX, dividida entre Manuel de Sousa Rosa filho, Maria José casada com Augusto Mota e Manuel Mendes Godinho, cujo filho construirá o casarão cujas ruínas ainda são bem visíveis, presumindo-se que Manuel de Sousa Rosa tenha conservado ainda alguma parte, como a "morada de casas" pois será uma outra sua filha, Ana, quem as virá a possuir (doação posterior ou herança). As propriedades resultantes da divisão da quinta deverão ter sido, então, sujeitas a novos registos cadastrais, os quais, por sua vez, serão subdivididos na geração seguinte (só a parte de Augusto Mota terá sido dividida em outras quatro ou cinco partes), forma em que permanecem, acho eu, até hoje. A Quinta é uma memória.  Os descendentes de Manuel de Sousa Rosa, casando entre si, trocando e vendendo entre si, vão preservando, embora divididos, a maioria dos terrenos da antiga quinta até aos anos oitenta do sec. XX, período a partir do qual começaram a alienar os bens. Mais cem anos.                                               

                                                              Epílogo 

 ... ao contrário dos Sousa, que desapareceram da face de Porto da Lage, os descendentes dos Sousa Rosa, o sobrenome actual não importa, ainda se agitam por ali, em corpo ou em espírito, fixos ou nómadas, almas errantes estrebuchando, aflitas, à procura das raízes. Se alguém, depois de 2080, continuar esta história que diga o que lhes aconteceu. (MFM)

(1)- onde fica, quem sabe?

25 de setembro de 2013

Cristãos-Velhos e Porto da Lage


As habilitações de genere são posteriores ao Breve "Dudum charissimi in Christo" do papa Xisto V, de 25 de Janeiro de 1588, que proibia o provimento de benefícios em pessoas com ascendência de cristãos novos.

Francisco de Quevedo(1580-1645), orgulhoso
cristão-velho:
Yo te untaré mis obras con tocino/
 porque no me las muerdas,
 Ninguém, mesmo apresentado pelo bispo ou pelo Papa, podia tomar posse de um benefício dentro da diocese, sem se tornar previamente “habilitado”, ou seja, sem ser submetido a rigoroso inquérito cuja conclusão provasse que o próprio e a sua ascendência eram cristãos-velhos, sem mistura de judeu ou outra raça. Inquirições de genere eram pois inquéritos à ascendência que tinham por finalidade provar a limpeza de sangue dos candidatos a determinados cargos e que davam origem a processos. Nos candidatos à vida clerical a habilitação de genere era condição para o requerimento da primeira tonsura.  O processo de habilitação iniciava-se com a petição do habilitando dirigida ao bispo da sua diocese, onde constava a filiação, a naturalidade dos pais, os nomes e naturalidade dos avós paternos e maternos. Na altura o habilitando depositava na Câmara Eclesiástica, a quantia necessária para as despesas das diligências, sendo-lhe passado um recibo. Sendo necessário fazer diligências noutra diocese, o juiz das habilitações de genere enviava ao respectivo juiz ordinário, uma precatória ou requisitória de habilitação.

Para proceder às respectivas diligências, existia um juiz comissário que, com o seu secretário, se deslocava ordinariamente às freguesias de naturalidade dos inquiridos, dos seus pais e dos seus avós, com a finalidade de proceder ao inquérito. O comissário começava por abordar os párocos das freguesias dos inquiridos, encarregando-os de nela escolherem as testemunhas. O interrogatório era então feito àquelas testemunhas, em número de oito ou mais, idóneas e bem informadas. Os depoimentos eram jurados sobre os Santos Evangelhos e com declaração de pena de excomunhão contra os transgressores. Uma das normas impostas consistia em guardar segredo sobre as declarações prestadas. Os inquéritos obedeciam a seis quesitos. Destes, os cinco primeiros diziam respeito ao conhecimento dos indivíduos em causa e dos seus ascendentes – pais e avós paternos e maternos. No sexto, perguntava-se se eles foram sempre cristãos e limpos de sangue. Inquiria-se ainda se alguma dessas pessoas fora alguma vez penitenciada pelo Santo Ofício, se pagara finta lançada a gente hebraica, se cometera crime de heresia, se incorrera em infâmias e coisas semelhantes. Da instrução também faziam parte, as certidões de baptismo do habilitando e de seus ascendentes, as certidões de casamento dos pais e avós, podendo ainda constar as declarações dos ofícios dos pais e avós paternos e maternos, entre outros documentos.
A sentença dada em relação, confirmava a informação genealógica do habilitando. Se a quantia depositada excedesse as despesas das diligências, o depositante era reembolsado, assinando o recibo que ficava no processo.

Os irmãos Manuel da Costa e Simão da Costa, candidatos a padres, moradores no Arcebispado de Lisboa “há muitos anos e naturais da Prelazia de Tomar, freguesia de Santa Maria Madalena”, filhos de Manuel Dias e Maria da Costa, moradores em Cem Soldos, netos paternos de Belchior Dias e Catarina João e maternos de Simão da Costa e Filipa Simoa, pedem que lhe seja feita a sua inquirição de genere em 20 de Dezembro de 1695. Nesta sequência é enviada uma carta precatória para Tomar, cujo juiz despacha no sentido de serem feitas diligências na Madalena. Em Cem Soldos são ouvidas dez testemunhas, incluindo um padre, não percebi se seria ou teria sido o pároco, embora a sua idade, 93 anos (pouco mais ou menos, como todos os interrogados) indique que já não estivesse em actividade, digo eu. Pois além do padre Matheus Nunes depõem Manuel Vaz, Manuel Lopes Mourão, Manuel Dias Carvalho, Manuel Gonçalves, todos eles de aproximadamente 62, 87, 72 e 60 anos , Grácia Nunes viúva, também com 93 anos “pouco mais ou menos”, João Lopes, homem solteiro que foi lavrador, com 90 anos “pouco mais ou menos” , António Lopes, António Jorge e António Nunes, todos trabalhadores com 44, 52 e 62 anos “pouco mais ou menos”, respectivamente. Todos se pronunciam sobre o grau de conhecimento que têm ou tiveram com os habilitantes, com os pais e com os quatro avós. A alguns conheceram de toda a vida de outros só ouviram falar. Do que conhecem garantem ser baptizado, cristão-velho sem mancha de judeu, mouro, mulato, mourisco ou de outra nação infecta das reprovadas em direito pela nossa Santa Fé Católica. De cada declaração é lavrado auto que é assinado com nome ou cruz.

No final do processo a sentença, emitida em finais de 1696, conclui pela limpeza de sangue dos dois manos que terão sido, esperemos que sim, dois saudáveis e felizes representantes da sua igreja, enquanto foram vivos. Depois …esperemos que também.

À semelhança dos irmãos Costa, em 1716 o padre Manuel Escudeiro, também de Cem Soldos, o padre Manuel Lopes Brandilanças em 1699,o padre  Manuel de Sousa em 1704 e o padre João de Sousa em 1714, todos os três de Assentis, foram sujeitos a inquirições de genere e a todos foi certificado que detinham a competente pureza de sangue. Todos eles pertencem a famílias - Costa, Escudeiro e Sousa – que, por sua vez, deram origem às gentes de Porto da Lage.   Manuel de Sousa Rosa é descendente directo dos pais de todos aqueles padres, à excepção dos Costa. Augusto Motta através do lado materno descende dos Sousa e dos Escudeiro e, do paterno, dos Costa. Mas, a bem da verdade eu já intuía, não precisava de tanta inquirição para saber que os que eu conheci só podiam ser “da boa e velha cepa” de cristãos velhos! (MFM)

O Padre António Vieira  lutou para acabar com a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos,
 não o conseguindo. Curiosamente foi o Marquês de Pombal, inimigo dos jesuítas, que acabou com tal distinção
 em 1772.


                                                          
Bibliografia Consultada: ADVIS , boletim informativo do Arquivo Distrital de Viseu; site da Torre do Tombo

25 de fevereiro de 2014

A Beselga e o Santo Ofício

Terreiro do Paço no séc.XVII -Óleo sobre tela de Dirk Stoop, Londres, 1662. Museu da Cidade

Manuel Escudeiro, mestre alfaiate estabelecido na rua direita da freguesia de S. Jorge da cidade de Lisboa, era tido como homem abastado e de vida limpa. Mas não vivia satisfeito; com menos de trinta anos, solteiro e com rendimentos, sentia-se em condições de aspirar a mais do que uma vida folgada assente no trabalho. Sonhava ter importância e influência, fruir honras de gente de bem!

E foi assim que, pondo os olhos numa vida futura cheia de enaltecerias, em Setembro de 1697 entregou, no Tribunal da Inquisição de Lisboa, um requerimento dirigido aos Ilustres Senhores Inquisidores Apostólicos da Inquisição da Cidade de Lisboa, no qual declara desejar servir os ofícios no cargo de familiar, pelo que lhes roga que, achando nele os requisitos necessários sejam servidos de o querer admitir nesse cargo.



Antigo palácio dos Estaus, sede da inquisição mais tarde, depois Teatro
Nacional  D.Maria II.

Os Familiares do Santo Ofício eram agentes laicos da Inquisição. Entrar para os seus quadros conferia o mais elevado grau de estatuto social e prestígio, permitindo ascender na escala social do Antigo Regime. Ficava, também,o Familiar imbuído de diversos poderes e regalias no âmbito das diligências do tribunal do Santo Ofício.
 Possuir a carta de Familiar garantia, por si só, que o habilitando tinha limpeza de sangue, meios abastados de subsistência e, essencialmente, atestava a sua origem de cristão velho. Pouco importava a origem social desde que aquelas duas condições estivessem presentes nesta ordem: ser cristão velho e ter meios – fazenda – que lhe permitisse viver abastadamente. E nunca esta ordem era trocada. Conta Camilo Castelo Branco no seu livro Sentimentalismo e História como uma das famílias da nobreza portuguesa “Os senhores da casa de Barbacena”, tão nobres que se colocaram ao lado de D. Miguel nas lutas liberais, nunca conseguiram habilitar-se ao Santo Ofício devido ao seu “defeito” original: descenderem de Antão de Castro, feito cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo da casa Real por D. João III mas declaradamente cristão-novo.
A aceitação do candidato a Familiar era antecedida de um rigoroso processo sobre as qualidades morais, pessoais, familiares, e, sobretudo, a certeza plena de não ter ascendência próxima de herege, judeu, mourisco ou negro, isto é, absoluta limpeza de sangue.




Paisagem de Minde
No seu requerimento Manuel Escudeiro, naturalmente, identifica-se. É filho de Domingos da Rosa e de Maria Fradeza, ambos do lugar de Minde, termo de Porto de Mós, bispado de Leiria, local de onde são também naturais os avós paternos Domingos João e Maria Esteves e os maternos, Simão Escudeiro e Maria Fradeza. 
  

Roque Gameiro: casa antiga de
Minde

Na primeira análise ao processo é referido que Manuel Escudeiro “mestre alfaiate e soldado de infantaria vive limpa e abastadamente, sabe ler e escrever, é sujeito muito bom e servido na vida e costumes, muito capaz para se lhe encarregarem todos os negócios de importância e segredo”.

Porém é também notado, nem se pergunta como o descobriram (afinal eram mestres no ofício), que todos os seus ascendentes são de Minde sim senhor, excepto o avô materno que “veio para o lugar de Minde vindo do lugar de Beselga ou de outro lugarejo pegado a este que se chamou ou chamava dos vargos(?) ambos do termo de Torres Novas, este foi ferreiro e serviu de alferes de governação no dito lugar de Minde”.

Não se sabe como Manuel Escudeiro reagiu a esta notícia. Ou se teria tido acesso a ela. Será que estes processos correriam “em segredo de justiça” ou ir-se-ia dando conta das diligências ao interessado? O certo é que não é posta em causa a informação inicial dada pelo requerente sobre a naturalidade do avô materno. Se terão concluído que ele apenas estaria mal informado sobre o assunto ou se os teria tentado enganar não sabemos.

Sabemos, isso sim, que em Novembro de 1701 ( já lá iam quatro anos desde o inicio do processo! ) o Reverendo Beneficiado Julião Pereira Cabanas, notário do Santo Ofício, é enviado ao termo de Torres Novas a saber do tal Simão Escudeiro, avô do habilitante e manda de lá a seguinte carta ( a ortografia actual é minha, a pontuação continua a ser a do Reverendo):

« Seguindo a ordem de V.Senhoria fui ao lugar da Beselga pelo qual passa uma ribeira e da banda de lá da dita ribeira há umas terras louvadias (?) sitio a que chamam as vargens (?) e tudo é termo desta vila de Torres Novas, porém no dito sitio das vargens (?) não havia vestígios nem achei memória de que houvesse nele casas nenhumas e no dito lugar da Beselga não achei pessoa velha que desse notícia de Simão Escudeiro nem que conhecesse seu neto Manuel Escudeiro da cidade de Lisboa e por ser o lugar da Beselga pequeno e ser a freguesia grande quase légua e meia de distância me informei com os moradores dos lugares mais vizinhos ao dito lugar da Beselga que todos são fregueses da freguesia de Nossa Senhora da Purificação de Assentiz e achei algumas pessoas mais velhas e dignas de crédito que conheceram muito bem a Simão Escudeiro que foi ferreiro no lugar de Minde termo da Vila de Porto de Mós e sabem que foi natural do dito lugar da Beselga e que conheceram a um seu irmão inteiro morador no mesmo lugar da Beselga por nome Filipe Escudeiro oficial de serralheiro a casa do qual vinha muitas vezes o dito Simão Escudeiro e conheceram ao padre Afonso de Torres clérigo que morreu sendo beneficiário em uma igreja da Vila de Tomar também irmão inteiro dos acima nomeados e que esses tiveram mais irmãos de que descendem muitos parentes que há em toda aquela freguesia que inda hoje é o seu sobrenome de Escudeiro e alguns são ricos e houvera cinco ou seis anos que morreu um capitão por nome Manuel Escudeiro que dizem se lhe avaliou o que herdaram seus herdeiros em mais de trinta mil cruzados e há outros pobres que houvera dois anos morreram no mesmo lugar da Beselga que usaram e serviam o oficio de serralheiro e as pessoas com quem tomei informação todas disseram que elas não conheciam ao dito pretendente Manuel Escudeiro e que não sabem se tem alguma fama ou defeito mas que bem conheceram o seu avô Simão Escudeiro que casou no lugar de Minde e serviu o ofício de ferreiro e sabem que era cristão velho e limpo sem fama nem defeito algum e que na mesma forma conheceu seus parentes moradores na dita freguesia sem fama nem defeito mas antes todos limpos dos melhores da dita freguesia é tal os muitos parentes entre os moradores da dita freguesia que poucas vezes sucede se celebrar o sacramento do matrimónio que não haja dispensa entre eles e não será fácil acharem muitas testemunhas que não se declarem parentes do dito Simão Escudeiro suposto muitos sejam fora do quarto grau e as pessoas que achei mais antigas são as seguintes Simão Jorge lavrador do lugar de Assentiz que era parente fora do 4.º grau, António Lopes lavrador do lugar de Fungalvaz, Simão Fernandes lavrador do Casal da Torre não conheceu Simão Escudeiro mas que sempre ouviu dizer era irmão de Filipe Escudeiro a quem ele conheceu, Maria Lopes, Maria Jorge, viúvas, Grácia Fernandes casada segunda vez com Manuel Simões lavrador que todas passam dos oitenta anos, que conheceram ao dito Simão Escudeiro e todas declararam serem parentes; a mim me parece que é limpo o dito Simão Escudeiro pela boa fama que têm os Escudeiros da dita freguesia. V.S. mandará o que for servido.
Torres Novas, dois dias do mês de Novembro de mil setecentos e um anos.
O Notário
Juliam Pereira Cabannas »

Sorte a de Manuel Escudeiro! Afinal o avô de origem desconhecida, que lhe poderia ter derrubado todos os sonhos, nem era judeu, nem mulato nem nada! Gente limpíssima, aquela “do lugarejo “ da Beselga!
E o processo prossegue, depois disto, a toda a velocidade! Com inquirições formais a várias testemunhas em Minde e na Beselga, sediado em casa de Simão Jorge.
Enfim, a ansiada Carta é passada a 26 de Abril de 1702, após o pagamento de 6 426 réis, pois conclui-se que …..ele e os seus ascendentes são legítimos e inteiros cristãos velhos e de limpeza de sangue sem fama nem rumor de alguma infecta nação e não incorreu em alguma infâmia ou pena vil de facto ou de direito, …é solteiro e não tem filho algum … tem a capacidade e é merecedor da ocupação que pretende… e assim o julgo limpo de sangue e o habilito para a ocupação de familiar. (MFM)

Fonte: Processo de Habilitação a Familiar do Santo Ofício de Manuel Escudeiro, Arquivo da T.T: Maço 54, Doc.1154

Mercado da Ribeira-Velha, Lisboa. Museu Nacional do Azulejo.


Desabafo Final: Incomoda-me falar sobre a inquisição. Se é certo que a História não se julga com os olhos de hoje, a crueldade, toda ela, é intemporal. A crueldade de quem se julga dono da verdade e quer transformar os outros à custa do terror, da tortura e da morte, está, infelizmente, muito próxima de nós no tempo, e é nossa contemporânea também, embora hoje “deslocalizada” deste pedaço de antigo centro de decisões que é a Europa. Por enquanto. A natureza humana será (?) assim mesmo e a nossa racionalidade aprendeu muito pouco.
E dado este meu “incómodo” assumo o tom ligeiro que tomou a descrição da presunçosa aventura deste nosso quase conterrâneo. Pois ser Familiar do Santo Ofício era coisa séria, nefasta e nefanda, não era, enfim, coisa bonita de se ser. Nem na  época (Cristo com o seu Mandamento Novo já tinha vindo ao Mundo), nem, muito menos, agora. E é por isso que eu pasmo com a quantidade de gente que, a toda a hora, nos sites e revistas de genealogia e afins, exibe, orgulhosa, os seus antepassados Familiares, quase sempre escondendo a origem social ou, não o fazendo, enaltecendo a capacidade de ascensão social do avoengo! Enfim, tal como a crueldade, a vaidade é ilimitada e de todos os tempos!
É claro que também não concordo que se arrenegue parente algum. Família é família, familiar que seja, o Senhor lhe perdoará já que a mim, pobre pecadora, me custa muito. Apesar do seu “defeito” reconheço que Manuel Escudeiro e eu partilhamos um “enésimosinho”  de ADN, sou descendente (através de Augusto Pereira da Motta) de Filipe Escudeiro (1588-1646) e também de  Oriana Escudeira (falecida em 1641 em Fungalvaz), ambos irmãos do tal Simão que a inquisição averiguou. Eles e outros mais (outro irmão Ignácio casa em 1611 com Maria de Sousa do Casal da Velida, digam lá se isto não anda também tudo ligado?), filhos do casal Simão Escudeiro e Maria Jorge, moradores na Beselga no sec.XVI onde ele se dedicava a trabalhar o ferro (ferreiro, serralheiro ou mesmo escudeiro, donde lhe teria vindo provavelmente o nome), ofício que passou aos descendentes, existindo ainda há pouco tempo serralheiros em Ourém com este apelido.(MFM)



6 de outubro de 2016

Quinta de Porto da Lage I



Continuando o tema do último post sobre a  Quinta de Porto da Lage trago hoje aqui a apresentação gráfica possível (quero dizer, dentro das minhas possibilidades- feita por mim!) da quinta, tendo como base os mapas por satélite google.
A primeira imagem representa o desenho do limite total da quinta e dos restantes terrenos propriedade de João Manuel de Sousa, este teria também terrenos do lado de "lá" da linha do caminho de ferro, que não estão aqui assinalados por não serem considerados importantes, neste caso.
A segunda é uma imagem aproximada de parte de terrenos da quinta e de outros, que deram origem à "parte urbana" de Porto da Lage.




Linha vermelha -contorno de parte da quinta; Linha amarela -contorno de outros terrenos de João Manuel de Sousa; A-terrenos comprados por Manuel de Sousa Rosa em 1883; B-terrenos comprados por Manuel de Sousa Rosa em 1895; C-outros terrenos; 1-casa de Manuel de Sousa Rosa Júnior construída em 1886; 2- casa de Augusto Mota construída em 1889; 5-taberna de Faustino dos Santos adquirida em 1893; 3- casa de Ana Sousa Rosa construída em 1898; 4- casa de António Sousa Rosa Júnior construída cerca de 1900.


Através desta figura podem ver-se as construções originais da quinta, o moinho e a casa de morada da quinta (casa dr. Sousa) que teriam outras pelo meio, como podemos ver  neste post . O edifício seguinte seria, novo ou aproveitamento de anterior, aquele onde se instalou a CUF na data ainda lá inscrita 1877?. Vieram depois, após a venda da quinta, as casa de Manuel Sousa Rosa Júnior (contou-me há anos a Isaura Rosa que a sua seria a primeira casa de PL, segundo lhe tinham dito no licenciamento de obras da Câmara Municipal, seria a primeira a ser licenciada?) e de Augusto Mota, que continuarão sós até 1893, data em que serão acompanhados pela taberna de Faustino dos Santos, a qual foi instalada numa construção pré- existente.
Estava, portanto, certo o Dicionário Postal e Chronographico do Reino de Portugal ao referir como três o número de fogos existentes em Porto da Lage em 1894. 
No inicio do século XX mais construções surgem: outras duas casas de filhos de MSR e a casa de Mendes Godinho construída no local (ou próximo) do Moinho, que será a única a não pertencer à família de MSR  em todo o território da antiga quinta, durante muitos anos.
Nesta década faz-se notar também em Porto da Lage um casal que vai tendo vários filhos - os Sousa Orfão, o qual, pela localização das casas actuais desta família, se deve ter instalado na zona denominada na figura como C.
A partir de meados da segunda década de XX assiste-se ao crescimento da povoação, a rua principal começa a tomar forma com a construção de casas destinadas à nova geração, filha dos donos das primeiras.





Anais do Município de Tomar de Amorim Rosa, vol. 1901-1925


"1906 - 4 de Outubro - a câmara deliberou proceder a pequenas reparações no caminho público de Porto da Lage (fls. 130)
1907 -7 de Fevereiro - o vereador João Mendes Godinho foi autorizado a proceder às reparações do caminho público de Porto da Lage (fls. 137)
1908 - 20 de Fevereiro - a câmara deliberou proceder à reparação do caminho público de Porto da Lage ao Paço até à quantia de 50$000 réis (fls.180)
1918 - 20 de Maio - a junta da Madalena pediu com urgência, a reparação da estrada que passa por dentro do lugar de Porto da Lage e que vai desde a estrada de macadame até à ribeira da Beselga. (fls. 443)"





Pelos anos trinta os baixos das casas já são, nalguns casos, destinados a comércio, a pequenas industrias (sapateiro, latoeiro) e serviços, enquanto se assiste à edificação de casas destinadas a arrendamento e ao alindamento das já existentes, integrando portões que ostentam letras com iniciais dos nomes dos proprietários e datas.

Em 1928 tem início o funcionamento do ensino primário, o que significará  não só a existência de crianças suficientes na localidade em idade escolar, como o reconhecimento da centralidade de Porto da Lage como um futuro centro educativo da freguesia. Apesar de, precisamente nesse ano, a estação de Paialvo ter deixado de ser a principal via de acesso a Tomar, não parece, no meu ponto de vista, que Porto da Lage tenha perdido algo da sua vitalidade e crescimento com esse facto. A fábrica do álcool e a consolidação da localidade como centro comercial da região, contribuíram, mais do que a estação, para o fulgor de Porto da Lage, de cuja  vida social já falaram como ninguém, neste blog, Dulcinda e Ilídio Teixeira, que durou até ao fim dos anos sessenta e que tanta nostalgia traz ainda a tanta gente. (MFM)
 ...continua ...

30 de abril de 2013

Recordações da Nossa Aldeia

 

Dulcinda Mota Teixeira é uma figura em qualquer parte do mundo. Porto da Lage não sabe a sorte que tem em a possuir. Onde mais existem dulcindas destas, de boina ou panamá na cabeça, montadas nos seus triciclos, pedalando  as compras para casa, verdadeiros repositórios do passado e forças de intervenção no presente? Ah, é verdade, e de oitenta anos? A vitalidade, a memória e a raiva desta mulher é tudo o que a gente deseja para quando for grande! O respeito pelo passado e a capacidade de (ainda) se indignar é algo que eu, cheia de vergonha, declaro já aqui serem objecto da minha grande inveja! Amar o passado virado para a frente é tão pouco habitual infelizmente!
Foi um momento de triunfo (consegui!), ouvi-la outro dia ao telefone – a narrativa está pronta, passe por cá quando quiser a buscá-la. A “narrativa” era o texto que eu lhe vinha pedindo há perto de três anos que escrevesse, onde contasse a todos o que me contava quando nos encontrávamos, sobre Porto da Lage e a família. Achava que não havia razão para isso, “ninguém ia ligar nenhuma”, ninguém estava interessado. Depois do Blog começar disse-lhe que agora já havia onde publicar, não lhe prometia grande público mas, pelo menos, meia dúzia de interessados iriam lê-la. Que não tinha tempo. No Verão passado fez-me sinal, parei o carro e atirou-me – Já comprei o caderno. O caderno? Pois, para começar a escrever aquilo! E começa quando? Isso agora! Para já não, está muito calor! Graças a Deus o Inverno foi longo e permitiu a produção do que se segue. Trata-se de facto de uma narrativa, como lhe chama a autora, bastante resumida (não posso deixar de lembrar o prazer, cheio de pormenores, de ouvir presencialmente a Dulcinda) da história de Porto da Lage  do século XX, com especial ênfase para a década da sua juventude – os anos cinquenta. Dulcinda Teixeira conta de memória o que viveu e o que ouviu dizer, é possível que, como acontece sempre nestes casos, os factos não se tenham passado exactamente assim contados pelas bocas de outros intervenientes. É uma inevitabilidade! Mas também, como acontece nas nossas casas e famílias, talvez estas situações de “desacordo” sirvam para promover mais discussão e avivar mais memórias.
Começo hoje a publicar o texto que a Dulcinda me entregou manuscrito Recordações da Nossa Aldeia, espero tê-lo respeitado integralmente (MFM):


Recordações da Nossa Aldeia

por Dulcinda Mota Teixeira

« Nos últimos tempos têm aparecido pessoas que gostam de ter conhecimento sobre as suas raízes».
                                                                                 I
                                                                         A Origem
Os Mota e os Sousa Rosa
A pequena aldeia onde nasci há oitenta anos - 1932, é uma povoação relativamente nova.
Era uma simples quinta com dois cursos de água; a ribeira que nasce perto da Serra de Aire e o ribeiro que vem de uma povoação chamada Longra.
Quando da chegada do comboio em 1864 começou a ser povoada por famílias que aqui compraram terrenos e construíram as suas casas.
Porto da Lage nos finais do século 19 era habitado por duas ou três famílias: Mota, Sousa Rosa, Santos Faustino e, um pouco mais tarde, Mendes Godinho.
Manuel Sousa Rosa veio da freguesia de Assentis já com família constituída, tivera sete filhos, quatro homens e três mulheres. Augusto Mota veio ainda novo para o lugar do Paço da Comenda e mais tarde veio a casar com uma filha de Manuel Sousa Rosa. Este casal deu à terra oito filhos, perderam uma filha jovem vítima de epidemia que dizimou grande parte da população portuguesa
A geração dos meados do sec.19 não se casou entre si mas a geração a seguir casaram-se entre si, quase todos primos em 1.º grau. Cinco casais eram primos entre si, outros cinco homens casaram com senhoras não primas. A povoação era constituída por Motas e Sousas Rosas. A juventude nascida nos finais do século 19 era tudo primos entre si
Era um tempo em que todos éramos primos e primas, tios e tias. Quase todos eram compadres por casamentos e baptizados. Uns com mais dinheiro, outros com menos.
Entre estes jovens houve um que foi mobilizado para a guerra, foi para França, teve a infelicidade de ser molestado com gases na célebre batalha de La Lys na região da Flandres
Também havia cunhadas e irmãs, uma das cunhadas que se julgava mais civilizada no meio, não perdoava nada às cunhadas Mota. Quando da separação do marido, cortou relações com as que ficaram do lado deste. Esta Gracinda Teixeira era irmã do meu pai. Não era nada meiga para as sobrinhas!
Os homens eram quase todos agricultores, cultivavam as terras que produziam azeite, figos, cereais, batata e legumes para consumo próprio. Tinham trabalhadores assalariados. Só dois pegavam na enxada para virar a terra – António Rosa Mota (da Quinta) e João Mota (dos Olivais) os dois homens mais modestos e honestos de Porto da Lage, nunca sobre eles se ouviu a menor leviandade, ao contrário de todos os outros.

Alguns pretenderam estabelecer-se com serviços de transportes para localidades vizinhas, outros para levar peixe e vendedeiras para mais longe – Sertã. Contam as netas de Manuel de Sousa Rosa (filho) que o avô quando ia em serviço, de carroça, a caminho de Tomar num local junto à Quinta da Anunciada, quando quis trocar de um carro para outro, em andamento, falhou o salto, sendo atropelado mortalmente por outra carroça. Até lhe chamavam o Manuel das carroças. Deixou três filhos pequenos mas a viúva foi mulher que não baixou os braços, ficou sempre conhecida por "tia Viúva".
Quando em 1928 começou a funcionar o ramal Lamarosa-Tomar a empresa das carroças morreu. Só Manuel Augusto Mota ficou com as descargas de vagões que traziam mercadorias para o armazém da União Fabril.
A filha mais velha do primeiro Mota (tia Anita) também se iniciou com a restauração, servindo refeições a quem por ali trabalhava e não tinha ainda família. Era viúva desde muito cedo, tinha um modesto estabelecimento de mercearias e vinhos, taberna -Vinhos e Petiscos- e com facilidade mostrava os seus dotes culinários ...                             (continua)